quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O desvio


A estrada era a direito. Mas a certo ponto havia um desvio. Não era uma encruzilhada, por isso não me obrigava a escolher. Ou pelo menos parecia.
Quando me detive naquele ponto e percebi que afinal havia outra opção, esta começou a crescer e já não a podia ignorar. Era uma escolha que parecia estar feita à partida, mas ainda assim era uma escolha.
Agora afigurava-se-me um outro caminho, e a hipótese de que talvez houvesse algo à minha espera, pacientemente, no seu fim, algo melhor e mais bonito cresceu na minha mente e saiu-me pelos olhos fora.
Mas a estrada por onde eu seguia era maior e mais confortável, com menos buracos e lombas, mais fácil para o meu frágil veículo deambular. Tive medo de arriscar, ficar atolada na minha curiosidade e perder-me no meio da noite, embora perdida já eu me encontrasse.
Segui a estrada grande como se não houvesse outra, na certeza de que esta me levaria onde eu queria, ainda que de facto não soubesse o que queria. Mas a pequna estrada e os seus mundos por descobrir ficaram no meu pensamento por anos e anos.

Um dia voltei lá, e a estradinha já não existia. O mato tinha tomado conta dela e apenas um pequeno carreiro a substituía. Mas em mim aquela estrada vivia, agora mais viva do que nunca, agora que vi tudo na grande estrada, agora é que eu ia ver.
No fim dela encontrei uma casa e vi uma vida abandonada, um túmulo em pedra fria onde se podia ler
"Esperei por ti, enquanto pude..."

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Daquela janela

O que vês da tua janela?

Esta pergunta não me leva para as minhas janelas, banais de uma cidade dormitório. Delas
vejo prédios com outras janelas, um café com vizinhos anónimos e quase que vejo um pequeno jardim.
Esta pergunta leva-me para uma outra janela. Os Avós chamavam-lhe "janelo", com uma pronúncia deliciosamente engraçada.
Uma janela que ficava numa porta, que podia estar fechada e ninguém para lá olhava, ou podia estar aberta e me dava um cheirinho de rua sem sair de casa, quando já era tarde e não podia sair.
Ficava na porta de uma casa pobre. Mas eu não sabia o que era ser pobre, sabia o que era ser feliz. E isso era-o, nada mais importava.
Porque dentro daquela porta estavam sempre à espera da minha pequenina pessoa, muitos e grandes braços abertos, cheios de um amor que não acabava. E pão com manteiga.
E fora dela ficava uma rua perfeita, enfeitada de vizinhos, intrigas, amigos e brincadeiras. E pulgas.
Foi naquele sítio que eu cresci, foi num "Bairro de Lata" que eu vivi os melhores momentos da minha infância. Para mim não era de lata, era de Ouro, e valia mais que o maior dos palácios.
Aquela janela e aquela porta davam entrada para uma casa que já não existe. Nem a rua, nem o bairro, nem mesmo os Avós. Já nada existe.

Excepto na minha cabeça e no meu coração, que é onde ficam guardadas as coisas boas que já não podemos ver ou visitar.
Mas ficam junto com a mágoa de já não saber se tudo era realmente assim ou se já é em parte imaginado, deturpado pelo nevoeiro dos anos e das novas memórias.
E não há forma de recuperar...

Como era, como quero que tenha sido, não interessa! Deixem-me apenas olhar pela janela da minha memória, ver esse filme e chorar.
De felicidade, saudade, melancolia.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Pelos caminhos de... Alentejo

(Desejei tanto fotografar-me no meio destas flores... Mas esta foi a única imagem possível.)



Tocada pela (c)alma das planícies alentejanas...


A paisagem a querer dizer-me algo sem palavras. A esmagar-me com a beleza das coisas que simplesmente existem.

Na rádio ouço algo alguém cantar sobre uma 125 azul, que me soa descontraído e alegre, apropriado, enquanto penso que aqui, os pouco automóveis que surgem com a estrada me parecem tão deslocados.
E estão.

Uma terra-Mãe repleta de vinhas, olival, seara e girassol. É toda uma paisagem a querer alimentar-me com aquilo que de melhor tem Portugal. E que em troca só me pede que a contemple em silêncio e devoção.
E tire uma ou outra fotografia para levar.

Levo também, na boca do coração, sabor de comida temperada de campo. Sabor a azeite e a alho, que teimaram em ficar a brincar no meu paladar.
E eu deixei. Até chegar o doce de uma queijada, tostada e rica.

O Sol, hoje, quer apenas abraçar-me carinhosamente, e não sufocar-me num aperto infernal. Ao reflectir-se nas searas , salpicadas de oliveiras ou sobreiros, dá-me um efeito cinematográfico de um mar dourado com pequenas ilhas verdes.

Surpreendo-me a amar também este simples, belo e calmo Portugal, e a querer levar algo dele comigo para o outro.
Aqui está.


(Texto escrito em 6 de Junho de 2009 na viagem entre Serpa e Beja, numa pequena agenda, e descodificado hoje com alguma dificuldade e algumas consequentes alterações)

terça-feira, 26 de maio de 2009

Falhar


Senti saudade e não a quis contrariar. Encontrei-me contigo. Quando me pediste mais companhia vacilei, mas cedi. Falhei-lhes e fiquei contigo. Egoísta.
Desejaste-me. Eu fiz o impensável e pensei, voltei a vacilar (não lhes quero falhar mais porra) e a ceder. Não te falhei, mas falhei-lhes, e a mim própria. Constatei que tinha errado. E afinal também te falhei. Culpa.
Cheguei-lhes. Sorri de desculpas e quis falar. Ninguém me ouviu, dormiam já todos. Sozinha.

Que falhanço, sou uma falhada.
Falho na minha própria existência; de tanto esforço para estar para todos, nunca estou inteira para nada nem para ninguém.

(Tu não falhaste a ninguém, excepto a ti mesma. E eles falharam-te todos.)



segunda-feira, 18 de maio de 2009

Citação de um pretenso-futuro-eu

"Suponho que tarde ou cedo se perde a candura. Talvez seja melhor assim, porque não se pode andar pelo mundo como um ingénuo, em carne-viva e sem defesas. (...) Agora, quando já dei volta à dor várias vezes e posso ler o meu destino como um mapa cheio de erros, quando não tenho nenhuma pena de mim próprio e sou capaz de rever a minha existência sem sentimentalismos, porque encontrei alguma paz, só lamento a perda da inocência."
O Plano Infinito, Isabel Allende
Dói, mas é necessário.
É necessário, mas dói.
A inocência não serve para nada e tem de se perder. Mas sabem tão bem essas talas ao lado dos olhos da mente que não nos deixam processar as coisas feias da vida.
Até que desaparecem e nos deixam expostos, a sofer na pele cada minuto da realidade, a questionar a cada passo a loucura do mundo. E diz que temos que nos ir habituando à merda da vida, que é para o bem da sanidade mental.
Então porque é que só quero ser inocente de novo? E eu não sou masoquista.
Ponham-me as talas de novo ou então consertem o mundo e ponham-no bonito, por favor.
(Só quero um dia ter essa paz para falar da minha existência sem sentimentalismos, porque agora parece-me absurdo.)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Diálogo Fantasmático-Imaginário #1

Ela senta-se no banco do comboio para mais uma viagem solitária.
O comboio chega à Estação Sombria.
Ou Estação das Chuvas, Estação do Frio, Estação do Medo.
Ele entra. Pelas portas e para o pensamento dela.

Ela: Estás aqui. Deixa-me estar na tua vida de novo. Só de raspão.
Ele: Não.
Ela: Não vai doer desta vez.
Ele: Ninguém passa só de raspão numa vida. Pelo menos ninguém como tu. E dói sempre. Da última vez quase me matou.
Ela: Também quase me matou a mim. Mas deixa, por favor.
Ele: Tu não. Tu és uma Bala.
Ela: ??
Ele: Quando apontas é sempre para acertar. Mesmo que seja "de raspão", dói muito. No corpo e na mente. Em mim, entraste e alojaste-te num sítio de onde é impossível remover-te, e deixaste sequelas para sempre.
Ela: Também me feri. Perdi parte de mim, da minha cápsula.
Ele: Eu sei. Por tudo isso te peço que não tentes mais. Pode ser fatal para ambos.

Ambos saíram na mesma Estação, uma qualquer no mundo real.
Ambos sentindo doer a ferida do pedaço perdido, e no silêncio desta dor, combinaram encontrar-se mais vezes.

terça-feira, 10 de março de 2009

Grave-idade

Hoje caí.
A meio de uma desnecessária correria para apanhar o autocarro, o Mundo meteu-se no caminho dos meus pés e fez-me cair.
Tão depressa via tudo da altura do meu metro e sessenta, como estava já reduzida à perspectiva de uma criança que ainda gatinha.
Nos segundos seguintes aos segundos em que espraiei o meu corpo pela calçada, não tive tempo de pensar muito, só tive tempo de me sentir uns quinze anos mais nova e ter vontade de chorar alto e bom som, e de ter um adulto comigo para me erguer de novo e consolar.
E soprar na minha ferida.
Aquele sopro que mais não é do que uma deslocação de ar, mas que refresca e alivia de uma forma quase mágica, ao sair dos lábios daqueles que nos querem sempre bem no alto desta vida.
Nesse momento quis que me soprassem na alma, que era aí que estava a ferida de estar ali
caída, magoada, sozinha, sem idade.

Hoje compraram-me o meu primeiro carro.
Sem que eu tenha sentido o pulo físico e o fogo-de-artifício que julgava acompanhar estas mudanças, subitamente parece que sou oficialmente adulta.
Tenho idade e responsabilidade para beber, votar, conduzir, e finalmente, para ter o meu próprio carro.
E no entanto sinto-me igual a ontem. E a anteontem. E a Março de 2006. E de 1999.
Sou tanto e tão pouco...

domingo, 8 de março de 2009

Talento

Penso que toda a gente deve ter um talento. Olho os que estão à minha volta e imagino qual será o de cada um deles.
Evitamento de procurar o meu.

O meu único talento é sentir.
Não gosto de sentir. Não me interesso por isso. Como tal não é um hobbie. É mesmo um talento.
Sinto como ninguém sente. Com arte e mestria.
E como é inútil! Completamente inútil este talento! Ninguém o vê nem admira, porque é só um sentir, não é explicável ou demonstrável. Não se manifesta sob algum tipo de catarse artística.
Só vive em mim. É o único artista deste patético circo de uma mulher só.
Um actor, um circo, um espectador. Uma mente talentosamente atormentada.
Eu.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Ano novo, medos novos

O ano começou como eu sabia há muito tempo que ia começar. E tinha medo. Era, nessa altura, aquele medo que temos das coisas distantes. Tenho-o muitas vezes. É tão aterrorizador, mas ao mesmo tempo a distância traz-me um consolo. É o consolo do célebre "Ai, até lá não me doa a mim a cabeça". E escusado será dizer que até lá a cabeça acaba sempre por doer. Nem que seja quando penso nesse inimigo do futuro.
(Não me bastavam já os do passado...!)
O tempo não pára e mal olho para mim, acordada num dia como os outros, o momento temido chegou. E o consolo da distância desapareceu, mas sou injectada com uma dose de força, de um sentimento de irreversibilidade.
"Aí vou eu, preparada ou não".
E é difícil. Mas temo já não ser tanto como parecia. Vem não sei de onde uma força, ou uma cegueira, que faz esquecer o medo e me faz enfrentar a realidade.
(Ai se um dia essa força me falta...)
E depois passou. E tudo parece tão ridículo como ter medo do papão debaixo da cama aos 19 anos. Mas nada me impede de ter este medo irracional da próxima vez.

Desta vez não passou. Porque desde há dois anos atrás estes medos das épocas de exames vêem e vão, mas deixam sempre um rasto de más notas atrás deles. Que se acumulam.
(E más notas com mais más notas não fazem notas boas...)
E vão alimentando os medos futuros. O medo de um futuro que agora me parece depender tão estreitamente das boas notas que já não tenho.
(Se ao menos não fosse pressionada!)
Aqueles auditórios e salas e testes sugam-me o cérebro, a ambição, a confiança, a vida.
Sinto-me cada vez mais estupidamente emburrecida.

Talvez um dia tudo isto me pareça ridículo. Espero que sim.
Até lá não me doa mais a mim a cabeça.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Não, não é cansaço...

A Mãe observa-a.
Olha fundo nas fundas meias-luas escuras debaixo dos seus olhos, no amarelo triste da sua tez.
Escuta o grito abafado da sua saudade.
Cheira o vácuo no buraco negro do seu medo.
Tacteia a ferida infectada, sobre o lençol que lhe cobre a alma.
A Mãe sente-a.
Como só uma mãe faz.

- É cansaço, Filha?
- Não sei, Mãe. Pergunta ao Fernando Pessoa.

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar.
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Álvaro de Campos

sábado, 17 de janeiro de 2009

meios-irmãos, meios-estranhos

Tenho dois meios-irmãos. Os dois da parte do meu Pai. Há uma qualquer hierarquia popular que define que se chamam meios irmãos só quando partilham a mesma mãe, e só irmãos quando partilham o mesmo pai. Já nem vou questionar os porquês disso.
Temos um milhão de anos de diferença (dois milhões no caso da meia-irmã mais velha) e não temos qualquer semelhança física. Nem eles têem entre eles. Mas descobri recentemente que o meu meio-irmão também gosta muito de lençóis de flanela. E foi esquisito.
Vejo a palavra "irmão" ser usada em diferentes circunstâncias.
Há irmãos que, embora tenham as suas divergências, partilham sempre de um sentimento que os une. Quanto mais não seja, o facto de terem vivido juntos em alguma altura das suas vidas.
Há irmãos que são unha-com-carne, melhores amigos e conselheiros uns dos outros. Têem-se ali. São-se. Para o bem e para o mal.
Há irmãos que ainda que não tenham afinidades de sangue, se tratam como tal, e a irmandade é tão sentida que ninguém discute a sua legitimidade.
Há pessoas que não são irmãos mas são terrivelmente parecidos. Por vezes nem se conhecem.
E depois vimos nós, que não somos nada disto, mas que toda a gente usa as mesmas palavras para nos descrever. Sermos irmãos é uma anedota, é embaraçoso, devia ser até motivo de revolta para os verdadeiros Irmãos!
Temos algo de irmãos, a ciência pode explicar isso. Mas não pode explicar o vazio de sentimento e de tudo que há entre nós. O que somos então?
Claro que somos meios-irmãos.
E também somos estranhos.
Somos meios-irmãos, meio-estranhos.
Assim já somos todos pessoas completas.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Amor de vidro


É um dia daqueles cansativos de tanto nada fazer. As pernas perderam músculos algures entre as horas sentada e os doces do Natal.
Vou à sala e dou um beijo à Mãe, daqueles cheios de saudades antecipadas pela certeza de uma perda, que se manifesta não se sabe bem porquê.
Olho para a janela da varanda e vejo desenhado no vidro embaciado um coração e por baixo a palavra "LOVE".
Quem escreveu aquilo? Eu? Não, eu não fui.
Então foi o Pai. Sei-o de imediato.
O Pai gosta de passar alguns dos escassos momentos que fica em casa a observar a rua daquela janela. E num desses momentos escreveu aquilo. Só pode.
E passa-me pelo coração a dúvida de um Pai que não conheço. Que escreve clichés nas janelas.
Porquê Pai? Tu até nem falas muito, nem és muito dado a lamechices dessas. Tantas vezes espero por uma palavra carinhosa tua, que não chega, ou chega em formas tão estranhas como uma ameaça de violência fingida, como quando era uma criança ainda pequena.
Porque mostras esse teu lado através de pontas de dedos frios numa janela ofuscada pelo choque do frio da rua para onde olhas e o quente confortável da casa onde moras? E para a qual às vezes preferes não olhar...
O que te ia na alma Pai? Alguma réstia dos anos 60? Da tua juventude? Da tua alma que não conheço? Não conheço...

Gosto do modo, por vezes embaraçoso, como as inscrições que fazemos num vidro embaciado permanecem, mesmo depois de este ter "desembaciado" e voltado a embaciar outra vez.
Não vou apagar aquela, Pai.
Para que volte e a vejas quando contemplares sei lá o quê nesta rua parada.
Para que eu a volte a ver e ela arrefeça novamente em mim a tristeza de saber que nunca te vou conhecer.
Nem tu a mim.