segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Não, não é cansaço...

A Mãe observa-a.
Olha fundo nas fundas meias-luas escuras debaixo dos seus olhos, no amarelo triste da sua tez.
Escuta o grito abafado da sua saudade.
Cheira o vácuo no buraco negro do seu medo.
Tacteia a ferida infectada, sobre o lençol que lhe cobre a alma.
A Mãe sente-a.
Como só uma mãe faz.

- É cansaço, Filha?
- Não sei, Mãe. Pergunta ao Fernando Pessoa.

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar.
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Álvaro de Campos

sábado, 17 de janeiro de 2009

meios-irmãos, meios-estranhos

Tenho dois meios-irmãos. Os dois da parte do meu Pai. Há uma qualquer hierarquia popular que define que se chamam meios irmãos só quando partilham a mesma mãe, e só irmãos quando partilham o mesmo pai. Já nem vou questionar os porquês disso.
Temos um milhão de anos de diferença (dois milhões no caso da meia-irmã mais velha) e não temos qualquer semelhança física. Nem eles têem entre eles. Mas descobri recentemente que o meu meio-irmão também gosta muito de lençóis de flanela. E foi esquisito.
Vejo a palavra "irmão" ser usada em diferentes circunstâncias.
Há irmãos que, embora tenham as suas divergências, partilham sempre de um sentimento que os une. Quanto mais não seja, o facto de terem vivido juntos em alguma altura das suas vidas.
Há irmãos que são unha-com-carne, melhores amigos e conselheiros uns dos outros. Têem-se ali. São-se. Para o bem e para o mal.
Há irmãos que ainda que não tenham afinidades de sangue, se tratam como tal, e a irmandade é tão sentida que ninguém discute a sua legitimidade.
Há pessoas que não são irmãos mas são terrivelmente parecidos. Por vezes nem se conhecem.
E depois vimos nós, que não somos nada disto, mas que toda a gente usa as mesmas palavras para nos descrever. Sermos irmãos é uma anedota, é embaraçoso, devia ser até motivo de revolta para os verdadeiros Irmãos!
Temos algo de irmãos, a ciência pode explicar isso. Mas não pode explicar o vazio de sentimento e de tudo que há entre nós. O que somos então?
Claro que somos meios-irmãos.
E também somos estranhos.
Somos meios-irmãos, meio-estranhos.
Assim já somos todos pessoas completas.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Amor de vidro


É um dia daqueles cansativos de tanto nada fazer. As pernas perderam músculos algures entre as horas sentada e os doces do Natal.
Vou à sala e dou um beijo à Mãe, daqueles cheios de saudades antecipadas pela certeza de uma perda, que se manifesta não se sabe bem porquê.
Olho para a janela da varanda e vejo desenhado no vidro embaciado um coração e por baixo a palavra "LOVE".
Quem escreveu aquilo? Eu? Não, eu não fui.
Então foi o Pai. Sei-o de imediato.
O Pai gosta de passar alguns dos escassos momentos que fica em casa a observar a rua daquela janela. E num desses momentos escreveu aquilo. Só pode.
E passa-me pelo coração a dúvida de um Pai que não conheço. Que escreve clichés nas janelas.
Porquê Pai? Tu até nem falas muito, nem és muito dado a lamechices dessas. Tantas vezes espero por uma palavra carinhosa tua, que não chega, ou chega em formas tão estranhas como uma ameaça de violência fingida, como quando era uma criança ainda pequena.
Porque mostras esse teu lado através de pontas de dedos frios numa janela ofuscada pelo choque do frio da rua para onde olhas e o quente confortável da casa onde moras? E para a qual às vezes preferes não olhar...
O que te ia na alma Pai? Alguma réstia dos anos 60? Da tua juventude? Da tua alma que não conheço? Não conheço...

Gosto do modo, por vezes embaraçoso, como as inscrições que fazemos num vidro embaciado permanecem, mesmo depois de este ter "desembaciado" e voltado a embaciar outra vez.
Não vou apagar aquela, Pai.
Para que volte e a vejas quando contemplares sei lá o quê nesta rua parada.
Para que eu a volte a ver e ela arrefeça novamente em mim a tristeza de saber que nunca te vou conhecer.
Nem tu a mim.