sábado, 3 de janeiro de 2009

Amor de vidro


É um dia daqueles cansativos de tanto nada fazer. As pernas perderam músculos algures entre as horas sentada e os doces do Natal.
Vou à sala e dou um beijo à Mãe, daqueles cheios de saudades antecipadas pela certeza de uma perda, que se manifesta não se sabe bem porquê.
Olho para a janela da varanda e vejo desenhado no vidro embaciado um coração e por baixo a palavra "LOVE".
Quem escreveu aquilo? Eu? Não, eu não fui.
Então foi o Pai. Sei-o de imediato.
O Pai gosta de passar alguns dos escassos momentos que fica em casa a observar a rua daquela janela. E num desses momentos escreveu aquilo. Só pode.
E passa-me pelo coração a dúvida de um Pai que não conheço. Que escreve clichés nas janelas.
Porquê Pai? Tu até nem falas muito, nem és muito dado a lamechices dessas. Tantas vezes espero por uma palavra carinhosa tua, que não chega, ou chega em formas tão estranhas como uma ameaça de violência fingida, como quando era uma criança ainda pequena.
Porque mostras esse teu lado através de pontas de dedos frios numa janela ofuscada pelo choque do frio da rua para onde olhas e o quente confortável da casa onde moras? E para a qual às vezes preferes não olhar...
O que te ia na alma Pai? Alguma réstia dos anos 60? Da tua juventude? Da tua alma que não conheço? Não conheço...

Gosto do modo, por vezes embaraçoso, como as inscrições que fazemos num vidro embaciado permanecem, mesmo depois de este ter "desembaciado" e voltado a embaciar outra vez.
Não vou apagar aquela, Pai.
Para que volte e a vejas quando contemplares sei lá o quê nesta rua parada.
Para que eu a volte a ver e ela arrefeça novamente em mim a tristeza de saber que nunca te vou conhecer.
Nem tu a mim.

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